Não sei bem por onde começar. Como tanta coisa, no escrever o mais difícil é mesmo o ínicio, encontrar uma forma de arranque, espontânea e sincera que me permita atravessar a barreira da subjectividade humana - isto é, chegar à universalização da experiência de cada um - para conseguir aceder ao mais profundo. Àquela matéria que não é o corpo mas sim a composição, o átomo interior que é impregnado de si mesmo, vive-se a si mesmo, mobiliza-se, dispersa-se, deambula por si mesmo e, no entanto, realiza-o num movimento consciente e uníssono com todos os outros átomos - um interseccionismo completo, onde cada individualidade espontânea permanece e reluz, reflectida e ampliada pela sua conjugação com tantas outras e únicas metades que há em todos nós, que partilhamos e escondemos dos outros e que afirmam que a soma não é maior que as partes, tal como as partes não são mais que o total: cada qual é uma parte inata e intrínseca. Essencial, eterna e no entanto, mutável, em constante renovação e mudança, de acordo com a pessoa.
É nesta minha preocupação de descrever e aceder à nossa essência comum e exclusiva que procuro comunicar e relatar, numa narrativa ritmada prenha de um naturalismo puro e descontraído. Atendo já que qualquer perversão da palavra que aqui uso é intencional - uso a palavra como a quero, não como é - porque a palavra é a essência: um bom escritor tem que ter uma consciencialização das palavras que usa, escolhendo-as de uma prateleira primordial para as depois polir e empregar como os símbolos universais que representam, mas sem deixar de as quebrar e impor a sua vontade sobre elas. É esse o trabalho de um mago: não invocar forças, mas domá-las e usar o seu poder cósmico e universal. Para tal e como tal, toda a corrupção da palavra que eu realizo, toda a descrição minuciosamente minimalista, certifica-se que cada palavra não é nem demasiado vaga nem extremamente descritiva: a palavra toma o sentido, como um tecido toma a forma do objecto que cobre e torna-se única e exclusivamente aquele sentido: A palavra é o sentido.
Dito isto, começo como deve começar toda a história: no começo.
David João