Sábado, 27 de Outubro de 2007

17.45

       David João Filipe: Do meu coração fugido, a cara doutora Filipa D'Lima. Pensei em dar-lhe um estatuto honorário nem que seja por uma vez, pelo seu texto ser tão bom.

      

17.45

 

 

17 horas e 45 minutos.

Seguindo um passo calmo e rítmico entrei no metro com o mp3 ligado no volume máximo. A cultura massificada do século XX sufocava-me especialmente. As personalidades clonadas eram-me hoje inadmissíveis, qualquer conversa era um pretexto para criticar o mundo em que vivo.

A carruagem estava vazia e sentei-me ao pé da janela. A primeira vez que andei de metro foi com a minha avó Teresa e disse-lhe que me queria sentar à janela para ver a paisagem. Há 6 anos que me sento sempre à janela e relembro esse dia.

Inevitavelmente, as músicas transmitem-nos estados de espírito característicos e eu estava a ficar cada vez mais deprimida. Desliguei o mp3. O silêncio da carruagem vazia e o som inconfundível da contagem das estações passadas eram ainda mais insuportáveis. Embora tivesse entrado no período de férias de verão continuava a ler livros sobre História, principalmente sobre a civilização romana. A distracção da sensação de sentimentos aprisionados era o que mais valorizada nessa altura. Através de guerras entre romanos e bárbaros abstríi-me da minha sociedade contemporânea.

Desviei o olhar da minha batalha e encontrei um olhar apaziguador que me mirava. Um largo sorriso unilateral se rasgou rapidamente, perfeitamente sedutor. Sorri em resposta mas rapidamente voltei para o grito ensurdecedor de Júlio César.

Esses olhos, de um castanho profundo que ninguém ousa comparar ao azul dos céus, não se separavam do meu rosto, disso eu tinha certeza. Sentia-os a queimar a minha pele e uma vontade inevitável de olhar novamente sobrepôs-se ao que me tinha imposto a mim mesma. Era só um olhar.

Os seus olhos não se desviaram. Permaneceram e intensificaram-se. Mais fundo na minha alma nua e desprotegida. Conheceu-me mais do que alguém poderá conhecer apenas num olhar poderosamente sabedor. Escondi o que pude.

Ele sentou-se ao meu lado, as guerras de Roma esquecidas no tempo e no espaço, a mão dele no meu rosto. Beijou-me ternamente e eu soube-o nessa altura, que era para sempre. Ele verbalizou-o e fomos um do outro nesse instante partilhado de silêncio único e perfeito. Nesse silêncio falei-lhe mais que em palavras alguma vez ditas com sonoridade e a beleza desses sons silenciosos foram a resposta às minhas dúvidas. Não mais escondi o que ele analisava tão superfluamente, tão devagar até chegar ao ponto central de uma profundidade inatingível por qualquer humano.

As estações passaram e as carruagens encheram. À nossa volta corpos imundos, suados e cansados, usados e desgastados, em pé e sentados. Humanos sem vida, cinzentos e de olhar morto. Éramos a sua inveja, sem sabermos o nome um do outro, sabíamos que era para sempre. De mão dada e palpitações compassadas.

Lentamente, a força da mão dele foi-se desvanecendo, a minha mão foi ficando solta. Lentamente ele levantou-se, nunca tirando os olhos dos meus. É para sempre. Saiu nessa estação sem olhar para trás, largou o meu olhar sem controvérsia nem remorso.

As portas do metro fecharam-se, o metro começou a andar. Ele não olhou para trás, os seus passos eram descontraídos, e não voltou.

Os meus olhos nas costas dele. O metro afastava-se velozmente em direcção ao túnel e em segundos vi o meu rosto na janela do metro, sozinha.

Não sei qual é a próxima estação.

 

Filipa D’Lima Outubro 2007


 

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música: Somewhere Over The Rainbow
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reflexo de turma 12º 12 às 22:13

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