Terça-feira, 11 de Novembro de 2008

Thesaurus

 

            Está uma sombra pequena a aproximar-se de uma sombra maior, na noite penumbra. Como estas sombras se fazem ver na escuridão é um motivo sobre o qual o leitor se pode debater mas tente aceitar e acompanhar este pequeno e romântico desvio da lógica em favor de um certo tipo de ambiente estilistico. A sombra pequena poderia ser a de um gatuno ou qualquer outro tipo de malfeitor que se preza a vandalizar e a violar a serenidade da sombra maior mas, não, não se apoquente que este malfeitor trata-se apenas de um estudante da sombra maior que se revela então ser uma Faculdade, mais precisamente, uma Faculdade de Letras.

            Onde estamos, ou seja, onde é que se encontra esta faculdade não é necessário e até poderia desconcentrar o leitor se viesse a saber. Muitas vezes, quando a realidade não corresponde à ficção, a suspensão da descrença – como os nossos companheiros anglo-saxónicos e euro-americanos poderiam descrever – é desfeita e pode-se quebrar totalmente o processo de leitura (e para o autor, até o processo de escrita). Até o modo de escrita nos pode afugentar. Tal como neste momento a história é contada do seguinte modo, poderia ser contada de outra maneira. E além do mais, não fossem os maneirismos de determinada localidade ou região, todas as histórias passavam-se num mesmo plano físico comum. Veja-se os contos infantis: que seria das nossas crianças se por acaso o Capuchinho Vermelho fosse de Odivelas e o Lobo Mau do Porto? Será também que realmente queriamos uma Gata Borralheira com um sotaque açoriano? Mas, para bem da consistência, deixemos em paz tais problemáticas e concentremo-nos no assunto à mão: Duas sombras, já respectivamente identificadas como um estudante e a casa de estudo que o alberga e o tempo do dia.

            Como bom estudante e como qualquer lisboeta que se faça passar por alentejano, já se encontra o nosso disciplo bebêdo desdo meio dia, pouco antes do almoço. Provavelmente é essa a maior motivação do seu esforço. Se estivesse sóbrio, nunca em mil anos se apanharia na situação em que se apanha. No entanto, para alguém ébrio, a maneira deselegante na qual, através do mato rasteiro e das heras que se inscrevem nos primeiros andares e que conduzem verticalmente aos pisos superiores, sobe até é visualmente impressionante e digna de louvar não fosse a anxiedade que o nosso escalador causaria nos corações de quem o pudesse ver. Finalmente, num contorcionismo e malabarismo digno dos mais elevados circos russos e ciganos e eslavos, o nosso guia dá um salto de tal forma monumental, de tal forma fantástico e digno de se ter registado para as gerações futuras (tanto para poderem apreciar tal feito como para ser usado como prova em tribunal disciplinar por arrombamento), de tal forma gargantuesco na sua impossibilidade que vai parar incólume na tesouraria do seio universitário. O seu plano nesta fria noite de Inverno (como todas as noites frias em todas as histórias) é pura e simplesmente destruir todos os ficheiros e papéis de importância desta instituição, num gesto demonstrativo da sua profunda admiração pelo nihilismo e pela anarquia, descoberto desde da leitura de há umas quantas bebedeiras para cá de umas quantas citações de uns quantos marxistas e uns quantos comunistas e tudo o que seja de esquerda e de algum modo alternativo à contemporânea sociedade regente e que se possa encontrar em revistas com o nome de “!Camarada!” ou “Avante”, proclamando slogans do género “Estudantes Contra (...)”. Contra o quê exactamente nunca soube nem tenciona saber, apenas o facto de estar contra lhe serve, já demonstra uma atitude de afirmação e de revolta, uma atitude que certamente vai ser recordada  pelos seus pares e pelos futuros docentes deste mesmo edificio que ambiciona destronar.

            Quando, por fim, nota onde se encontra, vai ao bolso buscar o seu fiel isqueiro, o farol de todos os estudantes que lhes ilumina a leitura nos tenebrosos dias que correm. Pegando no primeiro punhado de papeis que se lhe apresenta à frente que é, por ironia do destino talvez, a constituição estudantil. Murmura umas palavras chaves e com isto queremos dizer que grita sem pejo nem vergonha uns quantos clichés e slogans que ouviu na sua rua – We Don’t Need No Education, É Proibido Proibir e (o seu favorito) Et Pluribus Unum – e vai pegar fogo ao conto de fadas quando cai borracho no chão, ressonando de maneira a entrar em competição com qualquer morsa ou leão-marinho, enquanto o alcóol finalmente começa a assentar no seu sangue. Não queima mais que a ponta dos dedos.

            A poucos metros dali, noutro edificio, encontra-se a secretaria da Faculdade na qual se encontram os tais documentos destinados agora a não serem carbonizado. Mal sonharia o nosso nobre e bohémio vandâlo, que no seu esforço heróico de deixar definida uma decisão política que nem a ele lhe  parece exactamente clara, que para além de haverem duplicados de todos os documentos importantes noutros depósitos, já também foram todos digitalizados e conservados para as gerações futuras sob a forma de quadrados pixelizados.

 

                                          Bernardo Cão

 

música: La Campanella - Franz Listz
reflexo de turma 12º 12 às 22:37

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