Enquanto arrumo o meu armário percebo que guardei demasiado tempo peças que, há muito, deviam ter ido para o lixo das tarefas acabadas ou das ruas sem saída e, aí permanecido até que fossem só a leve brisa de um sonho qualquer. Inútil como os outros. E é uma mistura de alívio e pena fazê-las desaparecer. Mas vê-las deteriorar-se ainda mais é, agora, uma hipótese nada plausível. Olho lá para o fundo e reparo que há uma outra secção que pode ser recuperada. Culpa minha que as esqueci demasiado tempo. Sorte que, neste caso, ainda há tempo de recuperar o tempo quase perdido.
Abro uma gaveta e inexplicavelmente revejo o gesto de uma pessoa q existia nas ranhuras da minha imaginação. Tinha 23 anos quando ela apareceu pela primeira vez para me desarrumar as gavetas. Chegava e, com os seus gestos naturalmente nervosos abria e fechava uma gaveta qualquer, às vezes remexia lá dentro como quem busca alguma coisa que não sabe o que é nem porque procura. Isso irritava me bastante, principalmente em dias como hoje em que as acabara de arrumar. Então Cristina sorria e fazia o seu ar culpado de quem é apanhado de surpresa pelos próprios actos. Então, o sermão que eu começava a delinear desvanecia-se até às origens. Era dois anos mais nova que eu, o que me dava a sensação de ter os deveres de um irmão mais velho.
Um dia ligou-me do hospital. Tinha partido um braço, ficou até com uma pequena cicatriz. Escorregou numa pedra. Fui visitar a minha quase maninha fictícia. Brincou com o ocorrido, disse que podíamos fazer a competição de natação à mesma, que me ganhava só com um braço. Sorri, não havia nada que quisesse dizer. Tinha uma curiosidade expectante em observá-la, fascinava-me. A enfermeira disse q era normal ela ter dores durante uns dias. Nunca a ouvi queixar-se. Um mês depois voltou ao local da queda, fechou os olhos e propositadamente deixou-se cair. Perguntei-lhe porque o fizera. Respondeu-me que queria aprender a cair sem se magoar. “Conseguiste?”-perguntei-lhe. “Não, fiz uns arranhões…” Pensei que, tendo em conta que partiu um braço e ganhou umas quantas mazelas da 1ªvez, uns arranhões da 2ª já era um resultado considerável. Não voltou lá.
Era instável, imprevisível, excepcionalmente espontânea. Foi por causa disso que deixei de confiar ou desconfiar das pessoas. Confiava nos outros o mesmo que confiava em mim. Se não podia prever as minhas próprias acções, não podia prever as dos outros. Não existe confiança no desconhecido. Foi então que ela desapareceu.
-Lembras-te dela, Cristina?
-Sim, lembro-me de ti. Vamos, Rui, hora de ir para o aeroporto.
-Vamos, mas fecha a gaveta primeiro!
Silvie
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