Quinta-feira, 19 de Junho de 2008

Presépio

 

            Eram onze da noite, faltava apenas uma hora para o final do século e, com ele, do milénio. Eu atravessava as ruas de Paris num estupor inquietante, um entorpecimento de todo o meu ser derivado de um qualquer envenenamento cultural e espiritual que havia-me sido transmitido não sei como nem por quem, sentindo como se houvesse jazido toda a minha vida, adormecido numa insónia persistente e incurável. Sabia apenas que os meus pés conduziam um caminho cujo meu intelecto poderia apenas lhes confiar. Dei por mim a atravessar os Campos Elísios e a emaranhar-me cada vez mais na zona antiga da “Cidade das Luzes” até chegar a um prédio desconhecido e predefinido, donde provinha o ruído mais estrondoso e atemorizante daquele quarteirão, e, olhando lá bem para cima, no mais último e mais luminoso andar, as sonoridades tão familiares ao ambiente de festa quase que ganhavam matéria corpórea, mesclando-se com as estrelas milenares.

            Entrei sem porteiro algum que me impedisse. Estava vazio. O prédio era antigo, sem dúvida uma relíquia do século dezoito, todo o seu semblante arquitectónico publicitando a sua majestosa idade. De certo modo, a impressão que transmitia era que o edifício em si, a estrutura em si, cada andar e cada vestíbulo e cada quarto e cada divisão e cada corredor e cada pilar e cada porta e cada maçaneta e cada trinca e cada detalhe ínfimo daquela obra, ambicionava comparação e superação do momento eterno que se estava a concluir. Doze marcados no velho elevador, uma adição mais recente. O elevador arrancou. Sentia o seu tremer, as suas vibrações nos meus pés e na minha cabeça, sentia algo preso na garganta, como quando algo está prestes a mudar. E é esse e sempre foi o meu maior medo, para além do meu temor de elevadores. A mudança. Aqueles factos inerentes e imutáveis em qualquer relação que um dia irão revelar-se à luz do dia e alterar o inalterável, os amantes obscuros que definham sobre as verdades por eles fabricadas. O elevador pára.

            Ninguém. Mantenho-me vigilante e hipnotizado. Sinto-me leve e pesado. Carregado e conduzido pelos meus pés, mas pelos passos de outrem. O andar está vazio e empoeirado, um parque de estacionamento sem carros nem lugares para onde os enfiarem, apenas uma divisória longa e ampla, propícia ao eco e ao abandono. No entanto, longe, lá longe e ao fundo, uma luz de cima espreita, iluminando suavemente as escadas rústicas de cimento. Para um andar superior. O décimo terceiro. Compreendi que para alguém o alcançar era necessário ir até ao décimo segundo andar e a partir daí, subir para o piso ignorado. Esta era uma característica de um povo civilizado e sofisticado, mas cujos antigos medos e superstições não haviam ainda deixado a mentalidade colectiva.  A minha sombra persegue-me e empurra-me contra o precipício inverso e lá vou eu, caminhando como o primeiro homem forte de braços a caminhar na Lua, cada pegada minha inadvertida e conscientemente marcada no terreno insólito e inerte. Subo os degraus até chegar à portinhola obscura. Carrego no botão. Todo o ruído afaga-se e momentos pesam.

            “Bon soir et bienvenu. On-peut lui aider?”

            A minha garganta fecha-se sobre si mesma. Sufoco! Tenho a real sensação que sufoco, sinto-me nervoso e arrependido, a boca seca, as palmas das mãos suadas, quero vomitar como um animal após entrar na armadilha do caçador ou na boca do lobo ou na toca do leão, os meus joelhos tremem sobre o preso magnânime que é o meu corpo, suo e as minhas pupilas dilatam-se e tentam ajustar-se à ínfima luz existente e entro em pânico e tento gritar e tento falar e tento mexer-me, correr, fugir, tento tudo e nada acontece e eu não sairei vivo deste prédio.

            “Oui?”

            Então tudo pára e é como um murro seco no estômago. A sobriedade retorna e acalmo-me, encharcado no suor. Arranho o francês.

            “Oui, je veux entrer dans votre fête. Serait ça possible?”

            Ninguém me responde. Falta meia hora. A porta abre.

             

            A luz invade-me as pálpebras e por um momento sou cego. Aos poucos vai-se diluindo as inúmeras cores e formas e conteúdos e começo a definir contornos para se revelar diante dos meus olhos a mais elaborada e detalhada festa que alguma vez havia observado, a festa milenar, capaz de rivalizar qualquer orgia e bacanal romano, capaz de superar qualquer banquete barroco, onde rios de ouro saciam a sede sôfrega dos insaciáveis, a gula perversa dos morbidamente obesos e dos obesamente mórbidos devasta tudo, qual praga bíblica, enlevam-me aladas lúnulas e luminosos desejos flutuantes entre os visitantes fúnebres celebrando a vida debaixo desta cópula imoral, através do envenenamento do corpo físico por vários químicos e toxinas, sinto o fedor suado do deboche e a promiscuidade penetrarem-me forçosamente as narinas e ao mesmo tempo é o espectáculo mais sumptuoso e decadente na História de toda a raça humana e a única experiência do sobrenatural nesta nossa ímpia Terra. Neste baile de máscaras altos sacerdotes, clérigos, padres e frades sodomizam os canibais; patéticas desculpas de mulheres, escondem-se sobre camadas de centímetros de maquilhagens e vestuários e jóias e especiarias, lágrimas negras de risos maníacos e histéricos esborratadas nas suas bochechas lívidas, fumando das suas cigarretes de meio metro, dentadura podre e amarelenta, corrompida pela luxúria; um esgoto elevado num pedestal, ocupado pela mais repulsiva e degradante escória humana, dispersos crisântemos antropomórficos náufragos, excrementos ambulantes e dotados de pulmões negros e ressequidos, fumando e bebendo enquanto escarram sobre os carochos no fim do mundo, queimando-lhes na alma o seu olhar depreciativo e putativo, tudo isto numa enorme panóplia, uma polpa disforme e horrenda de cores e sons e formas. O que parece ser o Anfitrião, uma criatura alta e pálida, vestida excessiva e abusivamente de floreados vivos e letais, apresentando a máscara mais elaborada de todas, onde rugas circundavam mais rugas, composta por expressões sádicas e infernais, olhos escondidos de um branco pastoso, contrapostos contra o negro das suas olheiras, esta criatura produz-me um livro de coiro vermelho, borda doirada, pejado de assinaturas. A sua intenção, parece-me ser, a de que eu escreva o meu nome nele, de modo a registar a minha presença neste bacanal. A lista é enorme, e mesmo se eu tivesse a eternidade para ler o documento, ser-me-ia aquém do necessário, como se todo o milénio estivesse nele enquadrado. Assino o meu nome. Ao lado o Anfitrião rabisca um segundo nome. Tento perguntar-lhe o que escreve, mas não me faço entender, nem a ele, nem a nenhuma das incontáveis figuras, agora que o aperto na garganta volta e sinto o enjoo em todo o meu ser, como se Deus me houvesse renegado neste instante. É como se cada uma destas personagens, destas máscaras, que infestam o ar fosse apenas como mais um detalhe da festa, um doirado ornamento barroco, enjoativo na sua forma, vazio na sua essência, nunca deslocado do seu ambiente e como tal apenas interactivo com ele. Riem-se e divertem-se com o meu exaspero, o continuo aumento do meu sentimento de mediocridade, da minha condição de ostracizado desta seita e da outra.   

            O Anfitrião bate duas palmas e prontamente aparecem dois Anões, fumando um charuto cada um, passando brutamente por entre a gorda multidão, empurrando-os, insultando-os, bigodes fartos na barba por fazer, cabelo aos tufos e chucha na boa, como dois horrendos bebés disformes fugitivos de uma feira de aberrações do inicio do século, empunhando tridentes tão grandes quanto eles. Agarram-me e forçam-me no chão e, antes que o consiga evitar ou sequer o dê por isso, estou nu, no meio da divisão inconcebível, sem que eu consiga ver os limites da divisória, inexistentes ou meramente bloqueados pela parede da massa putrefacta do auditório. Tento novamente falar mas as vãs palavras tropeçam, rasgo sons guturais da garganta, as sílabas regridem a apenas grunhidos primitivos e sou um ser comum, uma besta que aqui é abatida, cujo intelecto não é capaz de alcançar Deus, nem exercer algum nível de compaixão ou piedade nestes animais cada vez mais semelhantes a suínos. Sentados ou em pé, comendo ou bebendo, as suas maquinações de civilização não escondem a sua natureza vil e puramente mesquinha! Quero morrer e acabar já com esta triste existência mas os Anões, ou para se entreterem a si ou ao público, ocupam-se a picarem-me e a manterem-me vivo com os seus tridentes rústicos e espancam-me e maltratam-me enquanto a festa mergulha em suor e vinho e lava quente da carne, até eu estar deformado e aleijado, uma sombra incapacitada até para a função de sombra. Os meus membros perdem a vontade e somente pendem do meu corpo por hábito e nem para jazer possuo forças. Sou o nu perante as máscaras, a promessa auto inflamada que nunca procuraram! Ponham-me sobre o pedestal e façam de mim a aberração principal, transformem-me no objecto de escárnio e escória, retirem-me a humanidade que nunca me pertenceu! O impulsionador da mudança que não é capaz de evoluir, o exponente da mediocridade que viveu na dormente ilusão de ser quem não conhecia viver… E de repente pergunto-me quem realmente usa máscaras enquanto sinto o vómito a subir a minha gorge.

            Um alvo em branco inscreve-se na minha mente enquanto me atiram do décimo terceiro andar. Nos meros segundos que demora a minha queda, a minha mente diverge-                  

-se num universo auto-contido para implodir extática, do mesmo modo que o meu cérebro respira pelo meu crânio rachado.

 

            Os médicos dizem-me que em um ano voltarei a andar. A falar deverá demorar pouco mais de três a cinco anos, devido às lesões cerebrais. Não percebo os médicos, os lábios mexem-se mas só oiço disparates e de certo modo aprendi a pensar sozinho. O milénio já entrou há algum tempo, não sei quanto. Resta-me só viver o principio da minha vida conhecendo de informante certo o quão promissor sou e o absurdo de tudo o que me espera, apenas para encarar tudo nu com um sorriso nos lábios, numa alma sem forma nem limites.

 

                                                                 Bernardo Cão

reflexo de turma 12º 12 às 22:36

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