Cansado.
Cansado, meu amigo, sinto-me... Sim, cansado.
É noite – tarde, muito tarde. Sento-me à secretária e escrevo-te esta carta. Não oiço nada, a não ser o som da ponta da pena (com a qual te escrevo) a raspar nesta folha de papel velho (na qual te escrevo). Cada traço, a cada movimento da minha mão, se ilumina numa letra preta que, com outras, formam as palavras que te dirijo. E assim, as minhas palavras ressuscitam. Ressuscitam porque da minha mente nascem, no meu corpo adormecem, nas minhas acções morrem e somente nesta carta renascem.
Consigo sentir o arder da lenha na lareira que acendi há momentos, mas não sinto o calor humano do fogo, só o arder. Sinto-o porque o observo: as chamas seduzem os pequenos troncos de madeira (nenhum escapa), acariciando-os com tentações ardentes, chamando-os para o pecado final. Afinal, qual é o mal de pecar? É humano. E neste exacto instante, a lareira que se encontra a indefinidos metros de mim, o seu fogo, as suas chamas, os pequenos troncos (os pecadores!), todos eles são mais humanos do que eu! São mais humanos porque se amam uns aos outros de forma louca e espontânea, como se não houvesse amanhã, como se fosse o curso natural da vida: a lareira tem de amar o fogo que a invade; o fogo tem de sentir as chamas que o devoram; as chamas têm de penetrar os troncos que as atraem e os troncos... Os troncos, coitados e impotentes, têm de se entregar à explosão temperamental das chamas. Mas então, e eu? Quem devo eu amar se não tenho quem me invada? Quem devo eu sentir se ninguém me devora? O que posso penetrar se não há quem me atraie? Só me resta ser coitado e impotente, mas nem isso posso ser – ninguém “explode” à minha frente...
Como podes ver, meu caro amigo, ando mesmo cansado. Velho e cansado como esta cadeira na qual me sento, cansada e velha. Porém, isso pouco importa. Não é de lareiras nem de chamas nem de cadeiras que te quero falar, isso são desvaneios deste teu ingénuo camarada.
Escrevo-te hoje porque te quero falar de personagens. Pois é... Dei por mim a lembrar-me do passado e dos tempos em que tu e eu juntos, sempre juntos, tentávamos descobrir o que havia para além daquele horizonte que nos desafiava. Mesmo assim, o que me traz mais saudades é a maneira peculiar como tu, só tu, conseguiste ter essa ideia naquela tarde de Verão. Sentámo-nos no monte, sentimos a brisa a beijar o nosso cabelo, as ervas a saborearem o leve toque das nossas mãos, o cheiro do sol a bater-nos na cara e, constantemente, continuamente, mirávamos e nunca tirávamos os nossos olhos daquele horizonte que nunca, mas mesmo nunca nos deixava de desafiar. E, com um simples movimento do vento, surgiu em ti um desejo de ser diferente. Recordo-me das tuas irreverentes palavras “Quero ser outro. Vamo-nos incorporar em mil e uma personagens! Vamos?”. Mil e uma, dizias tu, mil e uma... E a partir desse dia, em cada novo dia, a cada dia novo, éramos uma personagem nova! E sim, conseguimos sentir tudo. Querias entender a complexidade deste mundo, querias captar a diversidade disto tudo e conseguiste. Conseguimos. Pudemos experimentar novas sensações e saber o significado de cada momento e de cada coisa e de cada acção. Tudo simplesmente porque quiseste interpretar o que te rodeava: quiseste conhecer o porquê de chorar quando se está triste; o porquê de ter fome quando não se come; o porquê de dormir quando se tem sono; o porquê de pedir esmola quando se é pobre; o porquê de desprezar quando se é rico; o porquê de ser infiel quando não se é amado; o porquê de roubar quando se está desesperado; o porquê de gritar quando se está zangado; o porquê de beijar quando se está apaixonado; o porquê de rir quando nos sentimos felizes; o porquê de amar quando se sabe que se sofre... Porquês, porquês e porquês...
Lembras-te? Ainda te lembras? Han? O quê? Sim, consigo imaginar-te a responderes-me com aquele teu ar muito sério “Lembrar? Lembrar-me do quê? Eu cá não me lembro de nada!” e, logo de seguida, a desmanchares-te a rir (e eu contigo, sempre contigo!), dizendo que nunca, jamais!, te irias esquecer...
Mentiste, meu sacana. Fugiste, foste-te embora. Morreste. Erro meu. Interpretei aquilo que não devia ter interpretado. Incorporei-me naquilo que não devia ter incorporado. Personagem errada. Quer a minha, quer a tua. Tu, um homem. Mas eu, sem querer, uma mulher. Se não te tivesses mascarado nesse homem, eu não me teria mascarado nesta “mulher” que, afinal, é um homem. EU sou um homem. Mas quando quis experimentar ser mulher, descuidei-me e tornei-me naquilo que, definitivamente, não me devia ter tornado. Erro meu. Grande erro meu. Seguramente, personagem errada. Não quis, mas apaixonei-me. Por ti. Esta mulher (ou homem?) apaixonou-se por ti. E por gostar tanto de ti, tu abandonaste-me. Deixaste-me sozinho a amar-te. Este amor corrompou o teu coração, nunca pensaste poder amar-te tanto a ti próprio, pois não? Eu gosto tanto de ti... Desculpa, enganei-me, TU gostas tanto de ti que ficaste cego, incapacitado de amar outrém. Ficaste tão obcecado contigo próprio que nada mais podias ver à frente. Tornámo-nos egoístas e rancorosos. O nosso coração gelou e pouco podíamos fazer. Acabaste por morrer. Aquele tu que eu conhecia deixou de existir. Ficámos um poço de melancolias.
Tudo porque tu te amas. Ou eu me amo. Ou tu me amas e eu te amo. Não interessa porque, na verdade, eu sou tu e tu és eu. Nesta carta que escrevo, quando me dirijo a ti, dirijo-me a mim porque tu és eu e eu sou tu. Afinal, escrevo-me a mim próprio. Eu sou uma personagem que tu criaste para te acompanhar a criar outras personagens, mas na verdade, somos um só. E quando tu criaste o homem, eu criei a mulher. Apaixonámo-nos e destruímo-nos. Ironicamente, amaste-te até não teres mais forças. E por isso, estás cansado. Eu estou cansado. Estamos... Cansados. Haha...
A viagem acabou, meu companheiro... Não há mais que procurar,não há mais que sentir. No fim, nem tu nem eu descobrimos a verdade de nós próprios. Aquilo pelo qual mais ansiávamos nunca acabou por se revelar. Nunca chegámos a conhecer a nossa verdadeira forma, a nossa verdadeira alma. Por isso, chamas-te Desconhecido.
Adeus. Descansemos, que foi tudo demasiado longo.
Jean-Mathieu Cardoso
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